A Legalidade foi o maior movimento popular no Brasil desde a Revolução de 30. A reação de Leonel Brizola ao golpe dos militares para impedir a posse de João Goulart na Presidência da República, após a renúncia de Jânio Quadros, no dia 25 de agosto de 1961, mudou a história política brasileira.
A firmeza de Brizola no episódio fez dele um líder nacional e retardou a conspiração da direita que somente se concretizaria no golpe de 64, como o suicídio de Getúlio Vargas, em 1954, abortou o complô iniciado em 1950 para tornar inviável um governo nacionalista.
O dia 26 de agosto, data da Legalidade, faz parte do calendário de lutas do povo brasileiro pelo respeito aos seus direitos políticos.
Manhã do dia 25 de agosto de 1961, sexta-feira – Jânio Quadros renuncia. O vice-presidente, João Goulart, em missão oficial na República Popular da China, deve assumir a vaga, conforme prevê a Constituição em caso de renúncia. Vetados pelos ministros militares, o presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzili (PSD), assume a Presidência. Nesse momento, começa a resistência de Brizola pela posse de Jango e em defesa da Constituição. A Brigada Militar entra em prontidão, a população se concentra na frente do Palácio Piratini, na Praça da Matriz, centro de Porto Alegre. Da sacada do Palácio, Brizola faz seu primeiro pronunciamento garantindo a defesa do governo constitucional.
Manhã do dia 26 de agosto, sábado – Depois de uma noite tensa, milhares de pessoas se concentram na Praça da Matriz. O Ministério da Guerra manda bombardear o Palácio Piratini. A resistência é intensificada.
3h da madrugada do dia 27 de agosto, domingo – Brizola fala pelo rádio, denuncia o golpe contra Jango e pede mais mobilização. O Ministério da Guerra silencia as emissoras de Porto Alegre. Ao meio-dia, Brizola requisita a Rádio Guaíba e, em menos de uma hora, os transmissores são transferidos para os porões do Palácio Piratini. A Rádio Guaíba lidera uma rede de 104 emissoras gaúchas, catarinenses e paranaenses, a Cadeia da Legalidade, que transmite as mensagens do Governador. O III Exército tenta calar a Cadeia da Legalidade.
O primeiro apelo à resistência
“O Governo do Estado do Rio Grande do Sul cumpre o dever de assumir o papel que lhe cabe nesta hora grave da vida do País. Cumpre-nos reafirmar nossa inalterável posição ao lado da legalidade constitucional. Não pactuaremos com golpes ou violências contra a ordem constitucional e contra as liberdades públicas. Se o atual regime não satisfaz, em muitos de seus aspectos, desejamos é o seu aprimoramento e não sua supressão, o que representaria uma regressão e o obscurantismo.
A renúncia de Sua Excelência, o Presidente Jânio Quadros, veio surpreender a todos nós. A mensagem que Sua Excelência dirigiu ao povo brasileiro contém graves denúncias sobre pressões de grupos, inclusive do exterior, que indispensavelmente precisam ser esclarecidas. Uma Nação que preza a sua soberania não pode conformar-se passivamente com a renúncia do seu mais alto magistrado sem uma completa elucidação destes fatos. A comunicação do Sr. Ministro da Justiça apenas notifica o Governo do Estado da renúncia do Sr. Presidente da República. Por motivo dos acontecimentos, como se propunha, o Governo deste Estado dirigiu-se à Sua Excelência, o Sr. Vice- Presidente da República, Dr. João Goulart, pedindo seu regresso urgente ao País, o que deverá ocorrer nas próximas horas.
O ambiente no Estado é de ordem. O Governo do Estado, atento a esta grave emergência, vem tomando todas as medidas de sua responsabilidade, mantendo-se, inclusive, em permanente contato e entendimento com as autoridades militares federais. O povo gaúcho tem imorredouras tradições de amor à pátria comum e de defesa dos direitos humanos. E seu Governo, instituído pelo voto popular - confiem os riograndenses e os nossos irmãos de todo o Brasil – não desmentirá estas tradições e saberá cumprir o seu dever.”
(Palácio Piratini, madrugada de 27 de agosto de 1961)
Madrugada do dia 28 de agosto, segunda-feira – O gen. Machado Lopes não acata a determinação para bombardear o Palácio. Às 11h, Brizola anuncia, pela Cadeia da Legalidade, a ordem do Ministério da Guerra para bombardear o Palácio Piratini. Pede que as crianças sejam levadas para fora da cidade e conclama todos à luta, na capital e no interior. Revólveres são requisitados da Fábrica Taurus. Um posto de recrutamento de populares no pavilhão da Avenida Borges de Medeiros, o “Mata-borrão”, distribui armamentos; barricadas protegem o Palácio Piratini; operários e estudantes acampam na Praça da Matriz. Na Base Aérea, os aviões são impedidos de levantar vôo. Um pouco antes das 12h, Brizola deixa os microfones da Cadeia da Legalidade e, em seu gabinete, recebe o Comandante do III Exército, que anuncia sua adesão à resistência democrática. De todos os lados da cidade, chega gente disposta a lutar. O alistamento é feito nas esquinas, calçadas e em frente aos prédios. Forma-se um exército de mais de 150 mil populares. As aulas são suspensas. Há adesão dos governadores do Paraná, Nei Braga, e de Goiás, Mauro Borges.
Dia 29 de agosto, terça-feira – Comitês pela Legalidade são instalados pela cidade. Os bancos fecham. São centenas os voluntários, mais de 400 estudantes se juntam ao movimento, assim como intelectuais e artistas; a Carris organiza batalhões voluntários; os tranviários lideram grupos da categoria. A população de Canoas se alista em Porto Alegre; em Novo Hamburgo, empregados e patrões unem-se contra o golpe; sindicatos de Caxias do Sul aderem em massa.
Dia 30 de agosto, quarta-feira – Machado Lopes é destituído do comando do III Exército. Brasília, sob censura, toma conhecimento da resistência no Sul. Batalhões operários estão em prontidão para a luta. Tropas do marechal Odylio Denys, Ministro da Guerra, marcham contra o Rio Grande do Sul. As tropas do III Exército preparam-se para invadir São Paulo.
Dia 31 de agosto, quinta-feira – Tropas dos militares golpistas ocupam duas cidades catarinenses. Jango chega a Montevidéo. Já está em andamento a proposta parlamentarista, depois que os ministros militares reconhecem a força da resistência comandada por Brizola.
Noite de 1º de setembro, sexta-feira – João Goulart chega na capital gaúcha. Porto Alegre o aguarda com uma impressionante manifestação popular com bandeiras e cartazes. A multidão sai às ruas para saudá-lo. Para os gaúchos, está afastada a possibilidade de uma guerra civil. Jango permanece até o dia 5 de setembro na cidade.
Dia 2 de setembro, sábado – Brizola denuncia o golpe parlamentarista, diz que a emenda é uma violação à Constituição e defende que o III Exército, a Brigada Militar e corpos de voluntários avancem em direção ao centro do país. Manifestações populares de inconformidade explodem por todos os lados. Jango silencia. Há rebelião na Aeronáutica, entra em ação a Operação Mosquito, que pretendia interceptar o avião presidencial. A posse de Jango é adiada para quarta-feira. O Congresso aprova a emenda constitucional n° 4 e fica instituído o sistema parlamentarista de governo e a realização de plebiscito.
Dia 5 de setembro, terça-feira – João Goulart desembarca em Brasília.
Dia 7 de setembro, quinta-feira – João Goulart é empossado Presidente da República.
Segue texto de Leonel Brizola, extraído do livro “Legalidade, 25 anos - A Resistência que levou Jango ao Poder”, Ed. Rafael Guimarães, A. Porto, Ricardo Stricher e Sérgio Quintana. Porto Alegre, 1986
"A mobilização do povo gaúcho atingia um nível surpreendente. Em Porto Alegre e em todas as cidades, grandes e pequenas, já se formavam comitês de resistência e voluntariado. O espírito cívico do povo gaúcho impregnava todos os espaços e ia atingindo e envolvendo a tudo e a todos. Em frente ao palácio, era permanente uma multidão de dezenas de milhares de homens e mulheres de todas as idades e categorias sociais.
Constituiu-se, nessas horas, uma unidade impressionante do povo riograndense, seus quadros e lideranças de todas as atividades. Dos políticos daquela época e que ainda hoje estão em evidência, recordo-me que o senhor Paulo Brossard foi o único que agiu contra o Movimento da Legalidade, discretamente, na Cúria Metropolitana.
Havia uma preocupação profunda na alma de todos sobre a posição do III Exército. Nossa resistência poderia ter sido heróica, mas não tínhamos condições de enfrentar as forças federais, na hipótese delas decidirem investir contra nós. A nossa deliberação, porém, já era irreversível. Estávamos ao lado da ordem, da lei, da Constituição e da moral, dos direitos mais sagrados de nosso povo e da dignidade da própria Nação. O Rio Grande encontrava-se, já então, completamente bloqueado, sem nenhuma comunicação com o País.
O Vice-Presidente João Goulart em viagem de retorno, mas sem nenhum contato conosco. Chegavam muitos correspondentes estrangeiros, via Uruguai. Inúmeras pessoas conseguiam atingir o Rio Grande do Sul procedentes de outros estados para apresentar-se como voluntários.
Nessa noite de domingo para segunda-feira, tivemos os primeiros indícios de que se preparavam operações militares contra o Governo do Rio Grande do Sul. Mas foi nas primeiras horas do dia 28 de agosto, segunda-feira, que um radioamador nos transmitiu o que havia escutado de uma comunicação do General Orlando Geisel com III Exército, por ordem do Marechal Denys, determinando que fosse o Governo do Rio Grande do Sul compelido ao silêncio, com o emprego da força e do bombardeio pela Aviação, se necessário. A princípio, pensei que se tratasse de alguma brincadeira de mau gosto. Mas, logo em seguida, outra comunicação.
Vários radioamadores e o companheiro João Carlos Guaragna, dos Correios e Telégrafos, colocavam-nos diante de uma situação que até há poucos momentos parecia inconcebível. Novas mensagens foram captadas reiterando e exigindo o imediato cumprimento daquelas ordens. Pedi, ato contínuo, ao Doutor João Caruso, meu Secretário de Justiça, que redigisse um ato, portaria, decreto, fosse o que fosse, requisitando a Rádio Guaíba - única emissora que se encontrava no ar - sob o fundamento que necessitávamos, de emergência, daquele meio de comunicação para manter a ordem pública.
Determinei à Brigada Militar que ocupasse, imediatamente, com o máximo de forças, as torres da rádio e que as lanchas do Corpo de Bombeiros fossem armadas e ajudassem a guarnecer a ilha onde as torres se localizavam. O engenheiro Homero Simon, antigo técnico daquela rádio, foi incumbido de trazer os seus microfones para os porões do Palácio Piratini. Ocupamos também os estúdios da emissora.
Em pouco mais de uma hora, já estávamos irradiando do Palácio Piratini e pedi que, de imediato, anunciassem que o Governador tinha uma importante e urgente comunicação a fazer ao povo gaúcho e à opinião pública do País. As ondas curtas foram direcionadas para o território nacional.
Neste momento, o Palácio recebeu um telefonema do Quartel-General do III Exército, pelo qual o General Machado Lopes solicitava ser recebido pelo Governador, com a máxima urgência. Deviam ser 10h30min da manhã. Marquei audiência para às 12h. Minha primeira impressão era a de que o General vinha me apresentar uma espécie de ultimato. Lembrei-me do golpe de 45, quando se procedeu dessa forma com o General Ernesto Dornelles, embora em circunstâncias diferentes. Marquei a audiência para as 12h, porque desejava informar à população o que se passava e, principalmente, tendo em conta a nossa decisão de resistir, definitiva e irrevogável.
A Cadeia da Legalidade
Quando me dirigi para os porões do Palácio, acompanhado do Subchefe da Casa Militar, o então Major Emílio Neme, que permanecia ao meu lado em todos os momentos, onde já se encontravam os microfones e instalações de rádio, alguns jornalistas já me davam conta, embora em observações confusas, de que, possivelmente, o comando do III Exército se pronunciaria em favor da legalidade. Quando me preparava para falar, o engenheiro Homero Simon mostrou-me uma pequena luz vermelha, com a observação de que, enquanto aquela luz estivesse acesa, estaríamos no ar.
Falei de improviso e sob grande tensão, medindo, tanto quanto possível, as minhas palavras. Era muito delicada a situação. Precisávamos mobilizar ao máximo. Somar tudo o que pudéssemos, porém, sem criar nenhum tipo de problema ou constrangimento que viesse dificultar a integração do III Exército na defesa da legalidade. Pensamos em definir a nossa posição de resistência.
Denunciamos e levamos ao conhecimento da população as ordens que vinham de Brasília: ‘Deve o Comando do III Exército impedir a ação que vem desenvolvendo o governador Leonel Brizola. O III Exército deve agir com a máxima urgência e presteza, fazendo convergir contra Porto Alegre toda a tropa do Rio Grande do Sul que julgar conveniente. A Aeronáutica deve realizar o bombardeio, se for necessário. Está a caminho do Rio Grande uma força-tarefa da Marinha de Guerra, e mande dizer qual o reforço de que precisa. Insisto que a gravidade da situação nacional decorre, ainda, da situação do Rio Grande do Sul’.
Demonstramos, perante a população, os desatinos em que estavam incorrendo as autoridades de Brasília. Fizemos um último apelo ao General Machado Lopes e aos Generais comandantes do III Exército. Recomendamos à população que se afastasse daquela área, especialmente que retirasse dali todas as crianças. Juntamente com Neusa, minha mulher, lá estavam milhares de mulheres dentro e fora do Palácio, que se recusaram a se afastar. As crianças foram retiradas, mas o povo lá permaneceu. E, a cada momento, crescia a multidão.
Devia ser mais de cem mil pessoas naqueles momentos. A nossa sorte estava lançada. Afirmamos que resistiríamos até o fim e, se tivéssemos de sucumbir, ali haveria de permanecer o nosso protesto, lavando a honra e a dignidade do povo brasileiro.
A partir desse momento, começou a funcionar a Cadeia da Legalidade, com a integração de uma quantidade crescente de pequenas emissoras às transmissões da Rádio Guaíba. Centenas de jornalistas, nacionais e estrangeiros, sob a coordenação de Hamilton Chaves, desenvolveram um admirável trabalho que sensibilizou o povo brasileiro, civis e militares, por todos os quadrantes da Nação.
Nunca tive oportunidade de ouvir uma gravação deste pronunciamento. Não sei mesmo se existe, ou se alguma pessoa possui esta gravação. Gostaria de ouvi-la. Somente agora, depois de 25 anos, é que consegui ler uma transcrição da imprensa da época.
A definição do III Exército
Na hora aprazada recebi, em meu gabinete no andar superior do Palácio Piratini, o General Machado Lopes, que se fazia acompanhar de algumas altas patentes do Exército. O General, ao meu lado, na extremidade de uma mesa de reuniões, de imediato tomou a palavra, comunicando-me que o Comando e todos os Generais do III Exército haviam decidido não aceitar nenhuma solução para a crise, fora da Constituição. Levantei-me e apertei a mão do General, dizendo-lhe que, daquele momento em diante, passava a Brigada Militar ao seu comando.
Achavam-se presentes, além do Doutor João Caruso, o professor Francisco Brochado da Rocha e o Coronel Moojen, Comandante da Brigada Militar. Terminada a reunião, fiz questão de acompanhar o General Machado Lopes até a porta do Quartel-General do III Exército.
A partir do momento em que o III Exército assumiu aquela definição, começou a pender a balança em favor da Constituição e da Legalidade. Criou-se uma situação de resistência em todo o País. As mensagens da Cadeia da Legalidade atingiram as consciências em toda a parte. Todos procuravam sintonizar as ondas curtas da Rádio Guaíba. Estabeleceram-se novas correlações de força. Criou-se um ambiente de apoio e solidariedade generalizada de parte da população de todo o País. Foi nesse momento que começou a prevalecer a nova investida de ufanismo, envolvendo o próprio Vice-Presidente João Goulart, já então na Europa, a caminho do Brasil, que resultou na adoção de um mal-ajeitado regime parlamentarista, de tão funestas consequências. Sempre achei que se deveria evitar o confronto que se apresentava iminente.
Era necessário encontrar soluções para a crise, mas de nenhuma forma violando a Constituição, como fez o próprio Congresso, numa madrugada, ao instituir aquele regime, retirando poderes legítimos do Presidente. Esse episódio contém, sem nenhuma dúvida, lições e ensinamentos de grande valor e da maior profundidade. Não sou eu, porém, o mais indicado para trazê-los à tona. Tenho feito as minhas reflexões. É possível que mais adiante ainda venha a escrever um texto expondo as minhas observações”.
Fonte: http://www.pdtrs.com.br/
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